Reportagem da revista Marie Claire - "Minha vida com uma mãe bipolar" (edição 209 - set/08)

A professora universitária Rakell Aguiar, de 28 anos, passou a infância entre caixas de remédios de tarja preta e clínicas psiquiátricas. Sua mãe, Ábia, sofria de transtorno bipolar e, por causa dos surtos, também vivia batendo na única filha. As tentativas de suicídio da mãe e os períodos em que ela ficava prostrada na cama também marcaram a adolescência de Rakell, que encontrou no pai uma espécie de anjo protetor. Hoje, seis meses depois da morte da mãe, Rakell lamenta a sua ausência. 'Apesar de não termos tido um relacionamento amoroso, desses de mãe e filha, sinto que a falta que ela faz é enorme.'
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'Não precisava ter um motivo para apanhar da minha mãe. Por isso, eu cheguei a desejar a morte dela'
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Vai fazer seis meses que minha mãe, Ábia, morreu. Ela tinha 50 anos e foi vítima de um mal causado pelos remédios que ela tomava para tratamento de transtorno bipolar. Só que o que eu quero contar é minha história com ela. Nasci exatamente nove meses depois do casamento dos meus pais -eles se casaram em 23 de fevereiro de 1979, e vim ao mundo em 23 de novembro do mesmo ano. Minha mãe teve depressão pós-parto e, a partir daí, nossas vidas seguiram um rumo confuso e doloroso. Cresci vendo-a oscilar entre a depressão profunda e os surtos de raiva e histeria. Foi internada muitas vezes em clínicas psiquiátricas. Das mais diversas. Em Goiânia, onde nasci e vivo hoje com meu marido, vários psiquiatras conheceram minha mãe.
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Meu pai contava que os sintomas da doença apareceram no período de gravidez, quando minha mãe inventava que era outra pessoa, a Branca. Quando nasci, ela não me reconhecia e tentava me fazer mal, me machucar. Até hoje, me dói pensar que não tenho boas lembranças da infância. A única coisa que lembro são as inúmeras surras que levei. Morava perto de minha madrinha e aprendi a pular o muro para fugir de minha mãe. Aos 5 anos, já sabia andar sozinha de ônibus para ir à casa de duas tias, que moravam cada uma em um canto da cidade. Se a madrinha não estava, corria para a casa de uma delas.
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A relação dos meus pais era conturbada, com brigas envolvendo a família de ambos. Ele não aceitava a forma como a família de minha mãe se relacionava com ela, e ela não gostava da família dele. Mas meu pai estava sempre presente, nunca chegava atrasado em casa, nunca saía com os amigos. Era um devoto de minha mãe.
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Dos 5 aos 10 anos, minha vida era ir à escola com o corpo cheio de marcas. Qualquer coisa, como uma almofada fora do lugar, era motivo para pancadas. Minha mãe era forte, apanhar dela era doloroso. Por causa dos remédios, chegou a pesar 120 quilos. Meu sonho era que meu pai se separasse para que eu pudesse viver só com ele. Chegava a pedir, mas ele dizia que iria até o final, que casamento era um só. Ele levava a sério a história 'juntos na saúde e na doença'.
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Aos 10 anos, lembro de minha mãe deprimida em cima de uma cama. Nessa situação, as surras eram menos freqüentes porque ela dormia praticamente o tempo todo. Uma vez, ela me pediu um copo de água para tomar Lorax, um calmante que ficou marcado na minha memória. Levei, e ela engoliu vários comprimidos de uma vez. Naquele dia, falei que não pegaria mais água para ela tomar remédio. Que se quisesse se dopar, se doparia sozinha, e assim foi. Ela fez tratamento durante anos para se livrar da dependência desse remédio. Depois, voltou a tomá-lo. Quando eu vi aquela caixa de novo em casa, tive uma crise de choro. Foi como se eu tivesse encontrado o Diabo.
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Na escola, nunca tive notas baixas. Aliás, o estudo foi a forma que encontrei para conseguir viver em paz e evitar mais sofrimento. Sabia que, enquanto estivesse estudando, minha mãe não iria me bater. E acabei me tornando uma ótima aluna. Na época das manias dela, passava o dia todo na escola, só voltava quando meu pai já tinha chegado. Todo mundo sabia do problema, até porque eu vivia com marcas no corpo. Por isso era paparicada pelas professoras. Quando minha mãe estava melhor -nem na fase das manias, nem da depressão- até que era legal ficar com ela. Divertida, vaidosa, organizada com a casa. Essas foram as qualidades que herdei.
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Na minha adolescência, nossa relação piorou. Minha mãe nunca me proibiu de namorar, nem de sair. Eu ficava bem pouco em casa. Passava o dia todo na casa de amigos, até meu pai chegar. Mas os conflitos entre mim e ela aconteciam por nada. Lembro-me até hoje da última surra que levei, aos 17 anos. O quarto estava desarrumado, ela entrou e começou a me bater. Um dos tapas deixou meu olho roxo. Corri pra casa de uma tia, mas minha mãe me seguiu, foi até lá me pegar. No dia seguinte, eu tinha prova na escola -estudava no melhor colégio da cidade, meu pai se esforçava para me dar a melhor formação possível. Fui de óculos escuros e tive que escutar a zombaria dos colegas. No entanto, mais uma vez me saí bem nas provas.
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Nas inúmeras brigas que travava com meu pai, minha mãe dizia sempre que tinha ficado doente porque ele a proibiu de trabalhar -reza a lenda que ela foi muito ativa, bonita e com presença forte. Depois que se casou, passou a viver só para o meu pai e para mim, mas não gostava da condição de pedir tudo para ele. Além disso, ela era vaidosa, e meu pai não ligava para isso. Qualquer coisa que ela queria, era uma briga e tanto. Eu olhava para aquilo tudo e pensava: 'Nunca vou ser igual a ela'.
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Aos 18 anos, prestei vestibular para a Universidade Federal de Goiás e a Católica de Goiás -um para Jornalismo, outro para Psicologia. Passei nos dois, mas fiz o primeiro. Em 1999, comecei a trabalhar, e minha casa virou uma pensão: eu só ia lá para dormir e tomar banho. No início de 2000, minha mãe foi para a casa da mãe dela, no interior de Goiás. Eu e meu pai ficamos em Goiânia. Mas não durou muito: em cinco meses, ela voltou, depois de brigar com os irmãos e com a minha avó.
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Nessa época, ela foi parar em uma clínica, onde ficou durante quatro meses. Tentavam tirar dela o vício dos remédios. Era assim: o médico receitava dois comprimidos, ela tomava oito e de cinco tipos diferentes. Nessa fase da desintoxicação, tentou o suicídio quatro vezes, cortando os pulsos. Meu pai estava sempre atrás para tirar a faca da mão dela. Depois, ainda foi inter-nada em outra clínica, onde presenciei uma das piores cenas da minha vida: eu a vi amarrada na cama.
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Meu pai vendeu a nossa casa, onde morávamos há mais de 15 anos, de um dia para o outro, sem grandes explicações. Mudamos para uma alugada. Com o dinheiro, ele comprou um terreno e, aos poucos, construiu uma nova casa. Na época, eu me formei e comecei a trabalhar mais para não ficar muito em casa. Depois de dois namoros complicados, eu conheci Maykell, que era diagramador no jornal onde eu trabalhava. Ele tinha uma namorada e um filho. Eu também namorava.
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Foi um tempo em que minha mãe estava em outra fase conturbada. Ela não gostava de ficar sozinha, mas também não agüentava ninguém perto dela. Ficava internada, voltava para casa e era sempre agressiva, implicando comigo. Passaram uns meses, Maykell me avisou que tinha terminado o namoro e me convidou para ir ao cinema. Tentei resistir, mas não consegui -ele sempre foi muito sedutor. No início, minha mãe não gostou dele, mas Maykell acabou por conquistá-la.
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Como a relação com a minha mãe era difícil, pensei em ir morar sozinha. Mas meu pai foi contra, Maykell também. Dizia que, se era para eu sair de casa, que fosse viver com ele. Em pouco tempo, quase quatro meses depois do início do namoro, já morávamos juntos e com o casamento civil marcado para dali a um mês. Fizemos uma festa informal e iniciamos nossa vida de casados. Confesso que não tinha prazer em conversar com a minha mãe, que sempre ligava para reclamar de doença, falar mal do meu pai, da família, enfim, tudo aquilo de que eu tinha lutado para me livrar. Casada, morando em outro bairro, não queria mais me submeter a isso. A pessoa que tem transtorno bipolar sofre com fases de depressão e ansiedade, mas, com a medicação, é capaz de se manter em um meio-termo. No entanto, com o passar do tempo, os remédios não faziam mais efeito para a minha mãe.
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'Só hoje sei que devo muito a ela. Eu aprendi com os erros que minha mãe falava ter cometido em sua vida'
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Os dois últimos anos foram terríveis, especialmente para o meu pai, que era o 'guardião da mulher'. Ela havia engordado tanto que não conseguia nem tomar banho sozinha. Passava a noite toda gritando, e meu pai, que trabalhava durante o dia, na hora de descansar não podia pregar o olho. Acabou tendo um surto de estresse. Mais uma vez, ela foi internada, mas eu parei de visitá-la. Ir àquelas clínicas era reviver os piores momentos da minha vida. Ver minha mãe dopada de remédios me enlouquecia...
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Mesmo sem vê-la, entendi que a situação era grave. Quando ela saiu da clínica, meu pai não conseguia mais ajudá-la, estava exausto. Ela, então, entrou numa tremenda crise de ansiedade e não ficava cinco minutos no mesmo lugar. Queria estar dopada o tempo todo para não ver, nem sentir o mundo. Marcar horário com ela era o fim: perguntava as horas de 30 em 30 segundos. Nos últimos seis meses da sua vida, minha mãe ficou a maior parte do tempo internada. Ia para casa no final de semana, mas entrava em crise e não conseguia ficar perto das pessoas. Eu não sabia como agir, só chorava... Não agüentava mais vê-la daquele jeito e fui fazer terapia.
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Nessa época, eu já era professora universitária e, numa quarta-feira do final do semestre, com trabalhos para corrigir e provas para aplicar, comecei a me sentir mal de repente. Era um aperto no peito. Como tinha dormido tarde na noite anterior, acordei angustiada e cansada. Eu e meu pai conversamos pelo telefone, e disse que não queria mais ver a minha mãe. Bravo, ele me fez enxergar que eu não podia fugir do problema.
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Às 9h30 da manhã, ele me telefonou de novo para contar que minha mãe tinha sofrido uma queda e batido a cabeça. Desabei. Cheguei ao hospital e não acreditei no que vi. Parecia que ela tinha sofrido uma convulsão: estava agitada, não reconhecia ninguém e tinha um enorme corte na cabeça. Foi internada com o diagnóstico de síndrome neuroléptica maligna em decorrência do uso contínuo e excessivo de remédios. O caso era grave e havia risco de vida. Era uma quinta-feira. No domingo pela manhã, 16 de dezembro passado, ela sofreu uma parada cardíaca e morreu.
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Apesar de nunca termos tido um relacionamento amoroso, desses de 'mãe e filha', a falta que ela faz é enorme. Nas brigas que tínhamos, eu desejava a morte dela, falava que não iria chorar quando morresse. Bobagem! Aquela velha história de que 'mãe é mãe' é verdadeira.
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Hoje, graças a Deus, tenho um casamento abençoado. Brigas aqui em casa só de ano em ano, porque ninguém é perfeito. Eu procuro respeitar o meu marido como ele é, e a família dele também, porque respeito é fundamental. Quando vierem os filhos, sei que jamais terei coragem de levantar a mão para eles. Sou radicalmente contra a palmada.
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Tenho medo de sofrer desse transtorno. Como existe a hipótese de a doença ser hereditária, faço acompanhamento médico e procuro manter a vida saudável, com boa alimentação e exercícios físicos. É uma prevenção em razão do que acompanhei com minha mãe. Sigo confiante, acreditando na vida. Não penso em parar de trabalhar e, se hoje consegui vencer na vida, devo muito a minha mãe. Aprendi com os erros que ela dizia ter cometido.'

Comentários

Anônimo disse…
Minha mãe tb era bipolar. Sofri muito e muitos relatos comentados aqui vivenciei na pele. Uma coisa estranha é q no enterrro de minha mae, uma colega de faculdade dela disse q minha mae teve depressao pos parto qdo eu nasci. Identido ao q foi relatdo no artigo. Isso é comum em bipolares?
Anônimo disse…
Minha mãe tb era bipolar. Sofri muito e muitos relatos comentados aqui vivenciei na pele. Uma coisa estranha é q no enterrro de minha mae, uma colega de faculdade dela disse q minha mae teve depressao pos parto qdo eu nasci. Isso é comum em bipolares?

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