O POTENCIAL NEUROPROTETOR DO LÍTIO E SEU IMPACTO SOBRE A HISTÓRIA NATURAL DO TRANSTORNO BIPOLAR E DA DOENÇA DE ALZHEIMER

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INTRODUÇÃO: O LÍTIO E SEU MECANISMO DE AÇÃO
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O lítio é um elemento químico da família 1A da tabela periódica, sendo um dos átomos mais simples encontrados na natureza. Os sais de lítio figuram entre os medicamentos mais antigos utilizados na era moderna da Psiquiatria, sendo prescritos desde o século XIX, inicialmente como sedativos. Os primeiros estudos que avaliaram sua eficácia para o tratamento de transtornos psiquiátricos remontam ao ano de 1949, quando John Cade, na Austrália, publicou resultados atestando sua eficácia no controle de episódios maníacos (Cade, 1949). Portanto, podemos afirmar que os sais de lítio são utilizados há mais de meio século para o tratamento das doenças mentais, especialmente o transtorno afetivo bipolar (TAB), com eficácia inquestionável e dentro de parâmetros aceitáveis de segurança (van Melick et al., 2008).
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Apesar de sua ampla prescrição na prática psiquiátrica, pouco se sabia até recentemente sobre os mecanismos subjacentes à ação do lítio no sistema nervoso central. Os efeitos terapêuticos do lítio decorrem de ações em diversos substratos celulares diferentes. O mecanismo mais conhecido consiste na inibição da enzima inositol-monofosfatase (IMPase), o que impede a geração de inositol-1,4,5-trifosfato e conduz à depleção dos estoques de inositol. Desse modo, o lítio bloqueia a resposta aos estímulos extracelulares dependentes da atividade enzimática da fosfolipase C (PLC) (Atack et al., 1993; Manji et al., 1995).
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Além disso, o lítio é um potente inibidor da atividade da enzima glicogênio sintase-cinase (GSK-3). Essa cinase é expressa em vários sistemas biológicos e tem duas isoformas principais: a GSK-3α e a GSK-3β, sendo a última a isoforma mais abundante no organismo. Enquanto a GSK-3α tem participação preponderante no metabolismo energético, principalmente o metabolismo do glicogênio em hepatócitos, a GSK-3β também está envolvida na regulação de diversas cascatas bioquímicas necessárias para a homeostase do sistema nervoso central. Em neurônios, a GSK-3β modula uma série de processos de sinalização intracelular e, na regulação, fatores de transcrição que controlam a expressão gênica. Logo, a enzima exerce funções que vão desde a sobrevivência celular, passando pelo processamento de proteínas e fatores de transcrição, até mecanismos de plasticidade sináptica que estão, ultimamente, relacionados aos processos cognitivos e ao ajuste do humor (Hooper et al., 2007; Peineau et al., 2008).
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O PAPEL DA GSK-3β NA FISIOPATOLOGIA DOS TRANSTORNOS NEUROPSIQUIÁTRICOS
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Alterações da atividade da GSK-3β podem estar relacionadas ao desenvolvimento de determinados transtornos psiquiátricos e neurodegenerativos, como o transtorno bipolar (Manji
et al., 1999), a esquizofrenia (Lovestone et al., 2007) e a doença de Alzheimer (DA) (Hanger et al., 1992). Evidências convergentes apontam para a desregulação dessa enzima como um mecanismo subjacente às alterações do neurodesenvolvimento que predispõem a determinadas doenças mentais, como a esquizofrenia.
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No cérebro adulto, anormalidades da função e da regulação da GSK-3β podem influenciar a sinalização dopaminérgica, associando-se ao desencadeamento de sintomas psicóticos e à disfunção cognitiva (Lovestone et al., 2007). Em estudo post-mortem publicado recentemente, pesquisadores da Universidade de Genebra, na Suíça, identificaram aumento da atividade da GSK-3β (sem alteração dos níveis de GSK-3α) em tecido cerebral de pacientes portadores de transtorno depressivo maior, que faleceram após cometer suicídio (Karege et al., 2007). Essa alteração mostrouse associada à inibição da enzima Akt, o que, por sua vez, se correlacionou com redução da sinalização serotonérgica, possibilitando implicar anormalidades da enzima GSK-3β com um determinado fenótipo comportamental em pacientes portadores de transtorno do humor (O’Brien e Klein, 2007).
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A GSK-3β também se encontra hiperativa em pacientes com DA (Hye et al., 2005). No que se refere à neurobiologia da DA, a GSK-3β exerce um papel importante na regulação do metabolismo da proteína precursora do amilóide (PPA) e da fosforilação da proteína Tau. Portanto, perturbações do ajuste de sua função, levando à hiperatividade da GSK-3β, contribuem para a produção excessiva do peptídeo beta-amilóide (Aβ) e a hiperfosforilação da proteína Tau. Esses dois processos bioquímicos são os pontos de partida para a formação, respectivamente, das placas senis e dos emaranhados neurofibrilares, que correspondem aos principais marcadores neuropatológicos da DA (Klein e Melton 1996; Su et al., 2004).
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A atividade da GSK-3β é regulada pela fosforilação dos aminoácidos em sua cadeia protéica. Esse
processo depende do balanço entre diversas cinases e fosfatases protéicas. A forma ativa dessa enzima corresponde a sua forma não fosforilada, sendo, conseqüentemente, inativada pela fosforilação (Klein e Melton, 1996; Doble e Woodgett, 2003). Estudos realizados na segunda metade da década de 1990 demonstraram que o lítio é um potente inibidor da atividade da GSK 3β. Essa ação, observada em concentrações terapêuticas do lítio (1,0 mM), reduz (mas não suprime) a capacidade fosforilativa da GSK-3β, mediante bloqueio direto, não-competitivo e reversível de sua atividade enzimática (Lovestone et al., 1999). Essa inibição é decorrente da fosforilação do resíduo de serina na posição 9 da cadeia protéica. Essa capacidade de inibição da atividade da GSK-3β pode estar relacionada a sua atividade terapêutica como estabilizador do humor no TAB e também ser um alvo terapêutico em potencial na DA. Além da redução da atividade enzimática por meio do efeito direto sobre a GSK-3β, o lítio promove ainda a redução da expressão do gene da GSK-3 (Mendes et al., 2008).
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LÍTIO E NEUROPROTEÇÃO
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Nos últimos anos, houve um grande acúmulo de evidências sobre o potencial neuroprotetor do lítio (Nunes et al., 2007b). Em modelos celulares, demonstrou-se que o lítio previne a apoptose celular, inibe a expressão de proteínas pró-apoptóticas (por exemplo, os genes p53 e Bax), aumenta os níveis de expressão de genes citoprotetores (como o gene Bcl-2) e os níveis do fator neurotrófico derivado cerebral (FNDC) (Chen e Chuang, 1999). Além disso, inibe a hiperfosforilação da proteína Tau, efeito secundário à inibição da enzima GSK-3β (Hong et al., 1997; Forlenza et al., 2000) e protege contra os efeitos neurotóxicos do peptídeo β-amilóide (Alvarez et al., 1999). Em modelos animais, a exposição crônica ao lítio mostrou-se capaz de reduzir os danos causados por eventos isquêmicos cerebrais (Nonaka et al., 1998) e de estimular a neurogênese na formação hipocampal (Chen et al., 2000). O uso crônico de lítio em níveis terapêuticos estimula o metabolismo secretor da PPA, favorecendo sua clivagem nãoamiloidogênica e reduzindo, portanto, a produção do peptídeo Aβ. Além disso, o tratamento com sais de lítio mostrou-se protetor contra a hiperfosforilação da proteína Tau em diversos modelos biológicos (Noble et al., 2005).
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Recentemente, surgiram evidências na literatura do efeito neuroprotetor e neurotrófico do lítio em seres humanos. Em um estudo com 10 pacientes com transtorno bipolar, oito deles obtiveram aumento significativo do conteúdo de substância cinzenta após 4 semanas de tratamento com lítio, na concentração média de 0,8 mEq/l (Moore et al., 2000b). Em outro estudo, Bearden et al. (2007) constataram que os pacientes portadores do transtorno bipolar que faziam uso crônico de lítio apresentavam maior densidade de substância cinzenta cortical que os pacientes portadores da mesma doença, mas que não faziam uso do lítio.
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O aumento da densidade cortical é um indício do efeito neurotrófico do lítio. Outras evidências das ações neurotróficas do lítio no cérebro humano vêm do estudo do N-acetil-aspartato (NAA) por meio de espectroscopia por ressonância magnética. O NAA é um marcador da viabilidade neuronal e está localizado primariamente nos neuritos (e não nos corpos celulares). Da mesma forma, após 4 semanas de tratamento com lítio, houve aumento de NAA na substância cinzenta cerebral dos pacientes (Moore et al., 2000a). Em um estudo realizado em nosso grupo, os pacientes idosos portadores do transtorno bipolar que faziam uso crônico do lítio tiveram menor incidência de quadros demenciais, em especial DA, em relação aos idosos que faziam uso de outros estabilizadores do humor para o tratamento do transtorno bipolar (5% vs. 33%, respectivamente) (Nunes et al., 2007a). Esse estudo demonstrou que o lítio pode exercer um efeito protetor contra o desenvolvimento de DA em pacientes portadores do transtorno bipolar, condição que, sabidamente, está associada a maior risco de evolução para demência (Kessing e Nilsson, 2003).
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Mais recentemente, pesquisadores da Universidade de Pisa, na Itália, publicaram evidências do efeito protetor do tratamento com lítio (0,4 a 0,8mEq/l) sobre a progressão clínica da esclerose 5 lateral amiotrófica (Fornai et al., 2008b). Os supostos efeitos neuroprotetores foram corroborados por meio de modelo animal, sendo esse efeito protetor atribuído à estimulação da biogênese mitocondrial no sistema nervoso central, favorecendo a remoção de agregados protéicos e mitocôndrias disfuncionais. Os autores concluem que a ação do lítio suprime a proliferação glial e favorece a neurogênese na medula espinal, bem como a diferenciação neuronal em direção a fenótipos específicos (Fornai et al., 2008a).
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NOVAS PERSPECTIVAS TERAPÊUTICAS
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Na última década, observou-se grande crescimento do conhecimento sobre os mecanismos patogênicos da DA. Esses avanços possibilitaram o surgimento de novas possibilidades de intervenção terapêutica, visando a modificar a história natural da doença. Estudos de intervenção (fases 2 e 3) encontram-se em andamento em diversos centros de pesquisa e com diferentes drogas “antidemência”. São exemplos a imunoterapia antiamilóide, os inibidores da agregação do peptídeo beta-amilóide, os moduladores das secretases e os inibidores da GSK-3β.
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Em paralelo, a necessidade de um conhecimento maior sobre os aspectos clínicos e cognitivos da transição entre o envelhecimento cognitivo normal e as fases iniciais dos transtornos demenciantes -em particular a DA- levou ao desenvolvimento do conceito de comprometimento cognitivo leve (CCL) (Petersen et al., 1999), tendo como principal objetivo estabelecer critérios clínicos para identificar os casos prodrômicos de DA (Dubois et al., 2007). O desenvolvimento de métodos clínicos e laboratoriais para diagn stico precoce (que, idealmente, deve ser estabelecido na fase pré-demencial da doença), aliado à disponibilização de medicamentos capazes de modificar a patogenia da DA, são compromissos da ciência e necessidades urgentes da medicina. Essa combinação de intervenções proporcionará a modificação da história natural da DA, retardando a sua evolução clínica e patológica, com repercussões individuais e epidemiológicas significativas.
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Pesquisadores do King’s College de Londres, liderados por Simon Lovestone, publicaram recentemente os resultados do primeiro estudo aberto sobre viabilidade e tolerabilidade do uso de sais de lítio no tratamento da DA (MacDonald et al., 2008). Nesse estudo aberto de 1 ano de duração, embora a taxa de interrupção do tratamento tenha sido elevada (64%), apenas a minoria o fez em função de efeitos adversos importantes. Os autores concluíram que, respeitando-se os limites da tolerabilidade e manejando adequadamente os eventuais eventos adversos, podemos considerar o lítio uma droga candidata ao tratamento da DA.
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Ainda não existem estudos controlados sobre o potencial neuroprotetor do lítio em pacientes com DA ou em populações de risco para demência, e várias questões metodológicas ainda devem ser respondidas. Por exemplo, se existem subgrupos de pacientes que podem benefeciar-se mais dos
efeitos do lítio, qual deve ser a duração do tratamento com o lítio ou a idade ideal para se iniciar?Além disso as doses (ou níveis séricos) necessárias para a obtenção do efeito biológico não estão definidas, dependendo dessas informações a definição dos parâmetros de segurança e tolerabilidade.
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A indústria farmacêutica internacional ocupa-se atualmente do desenvolvimento e teste de novas moléculas com propriedades semelhantes às do lítio, sobretudo na inibição da GSK-3β. No Laboratório de Neurociências – LIM 27, do Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, uma equipe multidisciplinar procura, por meio de estudo clínico randomizado em pacientes portadores do comprometimento cognitivo leve, responder a algumas dessas questões. Se for comprovado o efeito protetor do lítio contra os processos patogênicos da DA, a prescrição dos sais de lítio poderá vir a representar uma estratégia terapêutica e preventiva de altíssimo impacto clínico e farmacoeconômico.
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CONCLUSÕES
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As evidências do potencial neuroprotetor do lítio são inequívocas, com indícios consistentes de que essa ação possa interromper ou retardar determinados processos patogênicos associados ao declínio cognitivo e à demência. O lítio pode, assim, contribuir para a modificação da história natural de diferentes condições que acometem o sistema nervoso central, tais como a DA, o transtorno bipolar e a doença do neurônio motor. Estudos em modelos celulares e animais permitiram conhecer melhor os mecanismos da ação neurotrófica e neuroprotetora do lítio, especialmente a inibição da enzima GSK-3β. Estudos naturalísticos e exploratórios em seres humanos corroboraram as hipóteses laboratoriais de que o uso crônico de lítio pode exercer um efeito protetor contra o desenvolvimento de quadros demenciais. Desta maneira, o lítio, pela inibição da GSK-3β, pode ser considerado uma droga com potencial de diminuir a incidência de doenças neurodegenerativas em idosos, sobretudo a DA (Chuang e Manji, 2007).
(FONTE: ORESTES V. FORLENZA(1) e WAGNER F. GATTAZ (2) (1) Médico Psiquiatra, Professor Colaborador do Departamento de Psiquiatria da FMUSP, Vice-diretor do Laboratório de Neurociências (LIM 27) do Departamento e Instituto de Psiquiatria da FMUSP. (2) Médico Psiquiatra, Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e Presidente do Conselho Diretor do Instituto de Psiquiatria da USP, Diretor do Laboratório de Neurociências (LIM 27) do Departamento e Instituto de Psiquiatria da FMUSP.)

Comentários

Anônimo disse…
Parabéns pelo post. É bacana saber que o lítio é um medicamento de excelente custo x benefício.Ainda não conheço um estabilizador de humor tão efetivo. Eu espero que mais estudos sejam realizados, pois certamente irão beneficiar muitos.

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