Eletrochoque (REPORTAGEM MUITO BOA)
Na era dos antidepressivos, o mais controverso dos tratamentos psiquiátricos está de volta depois de décadas de ostracismo (fonte: Revista Piauí, 25/06/08)
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Trancuilo Tezoto caminhou lentamente até uma fileira de cadeiras pretas. Acomodou-se em uma delas, dobrou o corpo, descalçou os sapatos e as meias, tirou um par de sandálias de borracha de uma sacola de plástico e as ajeitou nos pés. Endireitou o corpo, tirou a dentadura e a aliança e as entregou a sua mulher, Inês, para que as guardasse. Recostou a cabeça na parede e respirou fundo, como se aquela operação banal lhe tivesse custado um esforço sobre-humano. Há quase cinco meses, duas vezes por semana, o metalúrgico aposentado Trancuilo Tezoto repete o mesmo ritual. Aos 69 anos, ele tem os cabelos um pouco grisalhos e uma calva que começa a se pronunciar. Os seus olhos parecem estar sempre marejados. Aos sussurros, ele definiu a depressão que há três anos o corrói: “É uma dor sem fim, uma angústia e uma tristeza que não passam nunca, um mergulho permanente no horror.” Esse estado de espírito é acompanhado por fortes dores na nuca, inapetência e um cansaço infindável, exacerbado por noites agitadas e insones. Desde que afundou na depressão, Tezoto tomou um sem-número de medicamentos. Nenhum deles fez efeito. “Ele simplesmente não melhora”, disse Inês. “Vê-lo assim é morrer um pouco a cada dia.”
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Trancuilo Tezoto caminhou lentamente até uma fileira de cadeiras pretas. Acomodou-se em uma delas, dobrou o corpo, descalçou os sapatos e as meias, tirou um par de sandálias de borracha de uma sacola de plástico e as ajeitou nos pés. Endireitou o corpo, tirou a dentadura e a aliança e as entregou a sua mulher, Inês, para que as guardasse. Recostou a cabeça na parede e respirou fundo, como se aquela operação banal lhe tivesse custado um esforço sobre-humano. Há quase cinco meses, duas vezes por semana, o metalúrgico aposentado Trancuilo Tezoto repete o mesmo ritual. Aos 69 anos, ele tem os cabelos um pouco grisalhos e uma calva que começa a se pronunciar. Os seus olhos parecem estar sempre marejados. Aos sussurros, ele definiu a depressão que há três anos o corrói: “É uma dor sem fim, uma angústia e uma tristeza que não passam nunca, um mergulho permanente no horror.” Esse estado de espírito é acompanhado por fortes dores na nuca, inapetência e um cansaço infindável, exacerbado por noites agitadas e insones. Desde que afundou na depressão, Tezoto tomou um sem-número de medicamentos. Nenhum deles fez efeito. “Ele simplesmente não melhora”, disse Inês. “Vê-lo assim é morrer um pouco a cada dia.”
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Eram oito e meia da manhã de uma quarta-feira. O ex-metalúrgico fora um dos primeiros pacientes a chegar ao ambulatório psiquiátrico do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde seria submetido a mais uma sessão de eletroconvulsoterapia, ou ECT, o novo nome para um dos mais atacados tratamentos psiquiátricos, o eletrochoque. Tezoto passara por 35 aplicações, o triplo das sessões consideradas suficientes para ultrapassar uma crise depressiva. Os efeitos não se fizeram sentir, embora ele admita que, nos dias em que toma choque, se sinta um pouco mais aliviado. Uma enfermeira sorridente logo o chamou. “Eu durmo e não sinto nada”, explicou Tezoto, sem ansiedade, antes de desaparecer por uma porta entreaberta.
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A sala de espera do ambulatório foi se enchendo aos poucos e, às 9 horas, já havia quinze pacientes aguardando a vez. As portas coloridas do ambulatório e a televisão de plasma, ligada permanentemente, disfarçavam a desalentadora atmosfera hospitalar. Ansiosa, uma senhora que passaria pelo seu primeiro choque perguntou à vizinha sobre os resultados do tratamento. A resposta pareceu encorajá-la. Sua interlocutora acompanhava a irmã, que, segundo ela, depois de poucas sessões melhorara bastante. Com todas as cadeiras ocupadas, a sala estava em silêncio, como se um fundo cansaço tomasse conta de todos: quem chega ali passou por todos os tratamentos possíveis para os sofrimentos da alma, e vê no choque um recurso extremo e final.
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Criado há setenta anos, e praticamente banido da psiquiatria por quase quatro décadas, o eletrochoque voltou com força. Instituições de prestígio, como o hospital da Universidade Harvard, atendem pacientes voluntários para a eletroconvulsoterapia. Nos Estados Unidos, mais de 100 mil pacientes se submetem ao tratamento a cada ano. O Hospital das Clínicas é um dos poucos que nunca deixaram de usá-lo, desde que ele foi introduzido ali, nos anos 40. No final da década de 90, porém, o número de pacientes não chegava a dez por semana – hoje são oitenta. “Essa é agora a ala mais movimentada do hospital psiquiátrico”, contou Sérgio Rigonatti, psiquiatra-chefe do ambulatório de ECT. “O preconceito que estigmatizou o eletrochoque vai aos poucos desaparecendo.”
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O tratamento amigável e respeitoso que Rigonatti recebe dos pares nos corredores do Hospital das Clínicas é indício do atenuamento do estigma. Nos anos 80, colegas lhe pespegaram um apelido depreciativo, “Tigre”, sinônimo de mau profissional. Ele credita a má fama à sua defesa do eletrochoque e insistência em manter o serviço em funcionamento, no período em que a maioria dos departamentos psiquiátricos havia abandonado a técnica. “A sociedade e os médicos viam o eletrochoque como coisa de carniceiro, de torturador”, disse Rigonatti. “Ideologizar o tratamento foi um dos maiores erros que a classe médica poderia ter cometido, pois condenou milhares de pessoas a sofrimentos desnecessários.”
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A ECT é agora prescrita para a depressão intensa e continuada, desordem bipolar (que alterna estados de euforia e depressão), alguns casos de mal de Parkinson, de catatonia (colapso emocional que paralisa o paciente) e de esquizofrenia (doença que, entre outros sintomas, provoca alucinações, reações violentas ou completa apatia). “Em algumas situações, o eletrochoque é o único recurso que pode tirar os pacientes de crises depressivas e afastar o risco de suicídio”, disse, no Rio, o psiquiatra Marco Antonio Brasil, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e atual conselheiro da entidade. Ele considera que os excessos cometidos por clínicas e hospitais provocaram “uma reação negativa à própria terapia, e não apenas à sua má utilização”.
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Até os anos 30, os tratamentos psiquiátricos se restringiam basicamente à psicoterapia. Pouco se podia fazer com os internados a não ser sedá-los com barbitúricos e mantê-los sob vigilância permanente, para que não fizessem mal a si mesmos ou a outros. Assim, pacientes podiam passar o resto da vida em manicômios. Com a observação hospitalar, descobriu-se que esquizofrênicos, quando sofriam também de epilepsia, tinham melhora expressiva logo após os ataques epiléticos. Em 1917, o neuropsiquiatra austríaco Julius Wagner-Jauregg criou a malarioterapia, para induzir os ataques. O tratamento consistia em inocular a malária no paciente, para que a febre alta resultante provocasse convulsões e, em decorrência, atenuasse os sintomas. Dez anos depois, a pesquisa lhe rendeu o Prêmio Nobel de medicina. Em 1934, o médico húngaro Ladislas von Meduna testou o uso do óleo de cânfora, para causar as convulsões. Dois dias após a quinta aplicação, o seu paciente esquizofrênico levantou-se da cama e começou a falar, pela primeira vez em quatro anos. Apesar do sucesso, as dores e aflições lancinantes, que a cânfora provocava antes das convulsões, fizeram com que o tratamento fosse abandonado.
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O eletrochoque se baseia também na indução de ataques. Ele foi aplicado pela primeira vez pelo médico italiano Ugo Cerletti, que colocou dois eletrodos sobre a cabeça do paciente e provocou a convulsão por meio da corrente elétrica. O paciente inicial foi um homem de 39 anos, encontrado em estado delirante, numa estação de trem, em Roma. Diagnosticado como esquizofrênico, em 14 de abril de 1938 ele foi submetido à primeira sessão de eletrochoque. Quando acordou, Cerletti perguntou-lhe: “O que aconteceu com você?” A sua resposta, segundo o relato do médico, foi: “Não sei, talvez eu tenha dormido.”O grande inconveniente dos eletrochoques, no início, era serem feitos sem relaxamento muscular e anestesia. Os doentes se debatiam e fraturavam os ossos. Também vomitavam, engoliam as secreções, contraíam doenças respiratórias e, às vezes, morriam sufocados. Os equipamentos, sobretudo em hospitais públicos, eram mal regulados, o que fazia com que os choques fossem excessivos ou ineficazes. Nesse quadro, o tratamento ficou associado à violência e ao medo. “Os pacientes eram colocados em fila indiana e seguravam-se uns aos outros, quando iam tomar o choque”, contou Mário Eduardo da Costa Pereira, professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp. A maioria deles era forçada a se submeter à terapia, bastando que um médico a prescrevesse. Entre os anos 40 e 50, estima-se que 1 milhão de americanos tenham recebido choques compulsoriamente. Para piorar, o eletrochoque veio a ser usado como punição. “Era comum, em hospitais de todo o mundo, os pacientes mais rebeldes serem submetidos ao eletrochoque à vista dos outros, para que o suplício servisse de exemplo”, disse Pereira.
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No final dos anos 40, no Hospital Bellevue, em Nova York, crianças de menos de 4 anos, diagnosticadas como esquizofrênicas, receberam choques diários para ficarem, como diz um relato da época, “menos excitadas e ansiosas”. Pesquisas posteriores constataram que menos de 30% delas eram de fato esquizofrênicas; a maior parte tinha apenas desordens de comportamento que hoje seriam catalogadas como hiperatividade. Durante a Guerra Fria, em busca do aperfeiçoamento de técnicas de lavagem cerebral, a CIA financiou as pesquisas de um psiquiatra chamado Donald Ewen Cameron, que submeteu seus pacientes a sessões de eletrochoque. Nos anos 60 e 70, o uso de choques como instrumento de tortura foi registrado na Hungria, na União Soviética e na Argentina.
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Num final de tarde, Austregésilo Carrano fumou quinze cigarros durante uma hora de conversa numa mesa de bar, em uma transversal da avenida Paulista. Quando tinha 17 anos, seu pai achou um cigarro de maconha no seu quarto e encaminhou-o para tratamento médico. “Fui diagnosticado como esquizofrênico e recomendaram eletrochoques”, contou Carrano. Durante um ano e meio, foi submetido a 21 sessões de eletrochoque. Às seis horas da manhã ele era trancafiado num quarto. “Eram quatro horas de imensa agonia até a chegada do psiquiatra.” Quando o médico aparecia, ele era imobilizado na cama por dois enfermeiros que forçavam seus joelhos contra o tórax. Enfiavam-lhe então um tubo de plástico na boca para que não mordesse a língua. Dois eletrodos eram colocados nas têmporas, e a máquina disparava os choques por 25 segundos, provocando convulsões de quase dois minutos. “A sensação era de morte”, contou Carrano. “A convulsão era tão violenta que eu desmaiava”, além de vomitar, urinar e defecar nas roupas. No tratamento, quebrou dentes e fraturou uma clavícula e o maxilar.
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Carrano contou o seu drama no livro Canto dos Malditos, transformado depois no filme Bicho de Sete Cabeças, dirigido por Laís Bodanzky. Hoje ele integra o Movimento Antimanicomial, que defende o fim das internações em manicômios e dos tratamentos com eletrochoque. “Não posso acreditar que essa terapia do terror traga qualquer efeito positivo”, disse. “A mim, só causou dor, desespero, revolta. Durante anos, vivi escondido, fugindo das pessoas, completamente traumatizado.”
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A enfermaria de eletroconvulsoterapia do Hospital das Clínicas de São Paulo tem cinco camas, separadas por biombos. Numa manhã de quinta-feira, todas elas estavam ocupadas. Alguns pacientes dormiam, sob o efeito da anestesia. Outros começavam a despertar. Uma enfermeira mediu a pressão arterial de um homem de 41 anos, auscultou o seu coração e o interrogou sobre dores ou mal-estar. Ela analisou o seu hemograma, o exame de urina e as taxas de glicose, uréia e potássio. Um psiquiatra entrou e avisou que estava tudo pronto. O homem foi levado a um pequeno centro cirúrgico, onde um clínico e um anestesista lhe fizeram um eletrocardiograma. Aplicaram-lhe anestesia geral (de quinze minutos de duração) e um relaxante muscular. Dois eletrodos foram fixados na sua cabeça, e através deles o psiquiatra fez circular uma corrente elétrica por seis segundos. O paciente mexeu levemente um dedo do pé. Desacordado, voltou vinte minutos depois à enfermaria, acompanhado por um enfermeiro. Ao despertar, com biscoitos quebrou seu jejum iniciado às 22 horas do dia anterior e foi liberado para voltar para casa.
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No final dos anos 80, era raro acontecer de pacientes irem espontaneamente a um hospital para receber eletrochoques. A mudança ocorreu aos poucos. Os Estados Unidos, onde o procedimento chegou a ser proibido em 32 Estados, foram o primeiro país a reabilitá-lo. No Brasil, em junho de 2002, o Conselho Federal de Medicina baixou uma resolução normatizando seu uso. A resolução aponta a técnica como “um tratamento eficaz e seguro, mas que só deve ser aplicado em ambiente hospitalar”. O documento enumera uma série de exigências, tais como “obter o consentimento por escrito do paciente, e, em caso de seu impedimento, a responsabilidade recai sobre os seus familiares”. Também determina que é “obrigatória a avaliação das condições cardiovasculares, respiratórias, neurológicas e odontológicas do paciente” e que “o eletrochoque só poderá ser aplicado sob anestesia”.
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Apesar das exigências, o Ministério da Saúde ainda vê o tratamento com reservas. A Lei Antimanicomial, aprovada em 2001 para reduzir as internações em hospitais públicos, autorizou o eletrochoque apenas aos pacientes internados. No eixo Rio–São Paulo, ele só é realizado no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e no Hospital das Clínicas, que pertence ao governo paulista. Como o Sistema Único de Saúde, o SUS, não cobre o tratamento ambulatorial, quem sustenta o serviço paulista é a rede estadual. Essa situação gera um mal-estar entre as esferas federal e estadual de saúde.
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O psiquiatra Elias Monteiro Lino é um homem expansivo cujo bom humor se desfaz quando discute o pagamento da eletroconvulsoterapia. Coordenador do Departamento de Saúde Mental durante o governo de Mario Covas, Lino defende os eletrochoques. “Se ele é o único tratamento que surte efeito, por que o Ministério da Saúde não garante o seu acesso às pessoas mais pobres?”, perguntou. No Hospital das Clínicas, a maior parte dos pacientes de eletrochoque é composta de particulares. Eles desembolsam 500 reais por sessão. Enquanto isso, os pacientes do SUS precisam se candidatar a uma vaga. “A fila de espera é enorme”, disse Selma Lopes Pacheco, enquanto aguardava o retorno da filha de 21 anos, que se submetia à eletroconvulsoterapia para tratamento de um transtorno bipolar. “Ainda bem que eu consegui que ela fosse atendida pelo SUS, porque não teria a menor condição de pagar o tratamento".
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Para o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, coordenador nacional do Serviço de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, “o eletrochoque serve para casos muito específicos; não podemos banalizar o seu uso. Nossa preocupação é dar um tratamento mais humano aos doentes mentais e, na maioria dos casos, os medicamentos fornecidos pelo Ministério atendem a essas necessidades”. Ele é irmão do ex-deputado Paulo Delgado, do PT de Minas Gerais, autor da Lei Antimanicomial. Sua prioridade são os Centros de Atendimento Psicossocial, os Caps, postos de saúde psiquiátricos onde o paciente passa o dia, voltando para casa à noite. Para Pedro Delgado, o eletrochoque não deve ser adotado como política pública.
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A Clínica da Gávea é um hospital psiquiátrico privado no Rio que fica no meio de um parque. Ali, num casarão amarelo, a psiquiatra Julieta Guevara instalou um serviço de eletroconvulsoterapia. Numa sala de apenas dois leitos, a psiquiatra faz cinco atendimentos por dia, acompanhada de um anestesista e de um enfermeiro. Os procedimentos começam às seis horas da manhã e terminam por volta do meio-dia. A procura é grande porque psiquiatras de todo o Brasil encaminham pacientes para a clínica. Cada sessão custa 700 reais. “O eletrochoque virou um tratamento de elite”, lamentou a psiquiatra Julieta Guevara. O pesquisador Harold Sackeim também confirma isso ao dizer que, nos Estados Unidos, “a ECT é muito mais empregada em clínicas particulares e em hospitais universitários. Os pacientes que recebem o tratamento são justamente aqueles de maior poder aquisitivo e que têm acesso a profissionais mais conceituados e experientes”.
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Até a metade dos anos 50, o eletrochoque era o tratamento mais usado para doenças mentais severas. A psicoterapia era eficiente nos casos de neuroses – o que hoje se chamaria de ansiedade –, mas era incapaz de tirar um paciente de uma crise catatônica ou de um estado psicótico (quando o paciente sofre alucinações). A situa-ção mudou com o incremento da psicofarmacologia. Em 1954, o laboratório Smith-Kline (hoje Glaxo Smith-Kline) lançou o Thorazine, que atenua os sintomas de psicóticos. Em seguida, vieram o Tofranil e o Elavil para tratar quadros depressivos, o Lithium para a mania e o Haldol, também para as psicoses. Só com o Thorazine, em 1970 os lucros do Smith-Kline chegaram a 116 milhões de dólares. “Para os médicos, era muito mais fácil e menos controverso indicar medicamentos do que o eletrochoque”, explicou o psiquiatra Marco Antonio Brasil.
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Nos anos 80, uma nova geração de medicamentos, os inibidores de recaptação de serotonina, como o Prozac e o Zoloft, pareciam ser a solução final para todos os sofrimentos mentais. Mas, já ao final da década, médicos, pesquisadores e pacientes começaram a perceber que essas drogas não funcionavam para todo mundo e, para alguns, os efeitos colaterais podiam ser devastadores.
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Em 1985, o Instituto Psiquiátrico do Estado de Illinois fez uma revisão dos estudos sobre a eletroconvulsoterapia. Ela revelou que pacientes submetidos ao eletrochoque tinham 20% a mais de chance de melhorar do que aqueles tratados com antidepressivos tricíclicos, e 45% se comparados aos submetidos a outros tipos de medicação. E um estudo feito na Alemanha, em 1997, concluiu que a ECT era “claramente superior e substancialmente mais rápida” do que o tratamento com Paxil, um dos antidepressivos considerados mais eficazes.
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Sentada numa cadeira de rodas, para evitar riscos de queda depois da sedação, Aurora Lopes, de 74 anos, saiu sorridente do ambulatório psiquiátrico. Sua filha Eliane a acompanha a cada três meses ao Hospital das Clínicas. Com a morte de dois filhos e do marido, Aurora passou sete anos numa depressão arrasadora: não comia, não dormia e não falava. Chegou a pesar 35 quilos e passou a ser alimentada por meio de sonda. Veio a tomar onze comprimidos por dia, mas vivia o tempo todo agitada, dizendo que queria morrer. A angústia era tão grande que ela se atirava no chão e batia com a cabeça na parede. “Tínhamos que amarrá-la para que não se ferisse”, contou a filha. “Era muita aflição que eu sentia”, explicou Aurora. Finalmente a filha apelou para o eletrochoque. “Na quarta sessão ela já começou a apresentar melhoras. Na 12ª voltou a conversar, a se interessar por tudo. Agora ela sai, viaja e leva uma vida normal.”
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Os cientistas não têm uma explicação conclusiva sobre o mecanismo do eletrochoque. Ainda não se sabe, por exemplo, por que a terapia é mais eficiente nas depressões graves e nos transtornos bipolares. As diversas células do cérebro comunicam-se através de pulsos energéticos, a neurotransmissão. Vários neurotransmissores – substâncias químicas que intervêm no processo – já foram identificados. Um é a dopamina, associada à sensação de prazer. Outro é a serotonina, envolvida no controle do sono, do apetite e do humor. Um terceiro é a adrenalina, que é ativada nas situações de perigo, preparando o organismo para o combate ou a fuga. Em casos de transtornos mentais, esses neurotransmissores entram em pane. Na depressão, imagina-se que as informações de bem-estar cheguem truncadas. O resultado é a apatia, a tristeza, a angústia, a insônia. “É como a brincadeira do telefone sem fio”, comparou Julieta Guevara, durante uma conversa em seu consultório na Barra da Tijuca. “A informação passada através de um cochicho nunca chega correta até o último da fila.” Da mesma forma, quando algo na neurotransmissão começa a sair errado, parte da informação se perde, e, como os neurônios no final da linha não sabem o que se espera deles, dá-se a confusão, da qual resultariam os transtornos mentais.
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Julieta Guevara acredita na hipótese de que os estímulos provocados pelo eletrochoque limpem as conexões entre os neurônios, de modo que a neurotransmissão passe a se realizar de forma clara, resultando na volta do equilíbrio da mente. O psiquiatra Sérgio Rigonatti utiliza uma velha imagem para tentar ilustrar o efeito da terapia: “É como o tapa que dávamos nos antigos televisores, para que a imagem defeituosa voltasse ao normal.” O “tapa” elétrico no cérebro provocaria uma desconexão momentânea dos neurônios, que seriam religados de maneira diferente.
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A convulsão pode ser provocada por diferentes formas de ondas elétricas. Até o começo dos anos 90, a onda empregada era semelhante à corrente elétrica que se obtém numa tomada de parede, gerada por uma voltagem média de 120 volts. Nos aparelhos mais recentes, a corrente elétrica aumenta e diminui rapidamente, de maneira que os impulsos elétricos sejam breves. Por serem mais parecidos com os sinais produzidos pelo próprio cérebro, tais pulsos são mais rápidos e eficazes na indução das convulsões e reduzem os efeitos colaterais como o enjôo e a dor de cabeça. Com isso, a duração da descarga elétrica ficou reduzida para, no máximo, oito segundos, enquanto nos aparelhos mais antigos podia chegar a quase meio minuto.
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O psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro, do Hospital das Clínicas de São Paulo, passou a defender o eletrochoque quando fez residência, há três anos. “Mas não se deve transformá-lo numa panacéia para todos os males da mente, como ocorreu com os antidepressivos”, ele explica. Ribeiro sustenta também que o tratamento é seguro inclusive para grávidas, “porque as drogas podem afetar o feto”. Ainda assim, acredita que é preciso tentar os medicamentos. “O eletrochoque é quase um procedimento cirúrgico, em função da anestesia”, diz. “Exige jejum de oito horas, é proibido usar unhas pintadas, spray de cabelo, lentes de contato, próteses dentárias, jóias ou qualquer outro objeto que possa causar curto-circuito entre os eletrodos, provocando queimaduras no paciente. E também há efeitos colaterais, como a perda temporária da memória.”
Mathilda Kóvak é o pseudônimo de Ignez Imbassay, escritora e compositora carioca. Ela é uma mulher extrovertida cujo telefone em seu apartamento toca com freqüência. São amigos ou colegas, combinando algum programa ou um novo projeto. Mathilda acabou de lançar um livro infantil, A Caixa de Pandura, e se prepara para iniciar um programa de rádio. Durante mais de trinta anos, ela sofreu de depressão. Aos 15 anos, soube que tinha câncer no fêmur. A cada cirurgia aumentava a sua tristeza. O quadro piorou quando seu pai se suicidou. “Eu fui afundando numa dor sem fim”, contou ela. “As pessoas diziam que eu tinha que me animar. Eu até me esforçava, mas pedir a um deprimido que seja feliz é a mesma coisa que pedir a um paraplégico que ande.” Mathilda passou incólume por todos os tipos de drogas antidepressivas. Há dois anos, recorreu ao eletrochoque. “Na quarta sessão eu já era outra pessoa”, contou ela. “De repente eu saí da escuridão em que vivia. Não sei por que não me receitaram antes.”
Segundo o psiquiatra Marco Antonio Brasil, em uns poucos casos o eletrochoque deveria ser encarado como a primeira recomendação, e não o último recurso. Um deles é quando o paciente apresenta tendências suicidas. “Nessa situação, não há o que pensar: não dá para esperar que os medicamentos e as psicoterapias façam efeito.” O que ocorre, admitiu, é que muitos psiquiatras relutam em receitar o choque. “Não é confortável sugerir esse tratamento, pois as pessoas ainda se espantam e associam a técnica à loucura”, disse ele.
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O Instituto Madison de medicina, em Wisconsin, nos Estados Unidos, lançou recentemente um guia sobre eletroconvulsoterapia, para tranqüilizar médicos e pacientes. O guia atribui ao cinema e à literatura boa parte da má fama do eletrochoque. Hollywood nunca gostou dele. Entre 1948 e a virada do século, foram realizados 22 filmes em que o tratamento aparece como vilão. O mais incisivo foi Um Estranho no Ninho, de Milos Forman, protagonizado por Jack Nicholson. O filme, de 1975, baseou-se num romance de Ken Kesey, um dos expoentes da contracultura nos Estados Unidos. No livro, Randal McMurphy, o personagem interpretado por Nicholson, é transferido de uma colônia penal rural para um hospital psiquiátrico. McMurphy não está doente e espera encontrar no manicômio uma vida mais fácil. A sua rebeldia o transforma em cobaia de uma enfermeira tirânica. O filme mostra o eletrochoque como um instrumento de tortura. No fim, McMurphy é submetido a uma lobotomia e reduzido a um estado vegetativo.
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Um Estranho no Ninho, publicado em 1962, reflete uma época. Nos anos 60 e 70, as instituições psiquiátricas foram consideradas baluartes da violência do sistema contra o indivíduo. Ken Kesey defendia as idéias do psiquiatra italiano Franco Basaglia, um crítico da cultura médica que via o indivíduo como mero objeto de uma intervenção clínica. E o eletrochoque representaria o que há de mais violento e desumano nessa intervenção. O filme de Forman propagou essa visão por todo o mundo. Uma pesquisa feita na Irlanda, em 1983, mostrou que 60% das pessoas que assistiram ao filme passaram a defender o fim da terapia
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A imagem do filme Um Estranho no Ninho não sai da minha mente. Eu lembro dos enfermeiros pulando sobre Jack Nicholson, amarrando-o à cama, onde seu corpo é atormentado por tremores e espasmos violentos. Lembro quão louco ele ficava depois disso. Ele certamente não melhorava muito com as violentas dores de cabeça e todos os tipos de efeitos colaterais. Sou um ser social e estou consciente do que as pessoas pensarão de mim. Estar em tratamento por ECT transforma você em um membro da família dos doentes mentais.”
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O relato é de Kitty Dukakis, mulher do ex-governador de Massachusetts, Michael Dukakis, candidato democrata à presidência dos Estados Unidos em 1988. Durante vinte anos, ela padeceu de depressão e alcoolismo. Kitty tentou todos os medicamentos, e nenhum funcionou. Em 2001, ela decidiu, para espanto de alguns familiares, tratar-se com eletrochoque. Na primeira das doze sessões de sua terapia – feita com o pseudônimo de Jane Dee, para não constranger o marido – ela só conseguiu pensar nas cenas do filme. Ao término do tratamento, Kitty saiu da crise.
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Em 2006, publicou o livro Choque, o Poder Curativo da Eletroconvulsoterapia (ainda não lançado no Brasil). Primeiro, lançou-o na Califórnia, até hoje um dos estados americanos mais refratários ao tratamento. Um capítulo inteiro descreve a maneira como a literatura e o cinema tratam o eletrochoque. Ela sustenta que a ficção fez com que médicos e doentes, aterrorizados, trocassem o eletrochoque pelos medicamentos. Com abordagens preconceituosas, diz Kitty Dukakis, o cinema e a literatura beneficiaram indiretamente os laboratórios farmacêuticos.
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Os antidepressivos continuam a ser vendidos em larga escala. Mas são cada vez mais contestados. Na Inglaterra, estima-se que 3,5 milhões de pessoas tomem inibidores de serotonina. Em um só ano, foram 29 milhões de prescrições dessas drogas, sendo o Prozac, do laboratório Eli Lilly, a mais vendida entre todas. Pesquisas feitas nos Estados Unidos com seis antidepressivos (entre eles o Prozac e o Seroxat) revelaram que eles surtiram efeito em menos da metade dos indivíduos que os tomaram.
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Em A Perda da Tristeza: Como a Psiquiatria Transformou Tristezas Normais em Desordens Depressivas, os americanos Allan Horwitz e Jerome Wakefield, calculam que os grandes laboratórios americanos gastam cerca de 25 bilhões de dólares ao ano com marketing e lobistas. Também contam a história do jogador de futebol americano Ricky Williams. Em 2002, no programa de televisão de Oprah Winfrey, o jogador disse sofrer de uma “timidez dolorosa e crônica”. Descobriu-se depois que Williams fora pago pelo laboratório Glaxo Smith-Kline para falar que sua timidez era doentia. Em 2003, uma propaganda do Zoloft, publicada no American Journal of Psychiatry, mostrava uma jovem cabisbaixa, com um chapéu lhe encobrindo os olhos, e aparecia gravada uma pergunta: “Ela é apenas tímida? Ou isto é uma desordem de ansiedade social?” Logo abaixo, se lia: “Zoloft, agora indicado para desordens de ansiedade social.”
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Em Timidez: Como um Comportamento Normal Se Tornou uma Doença, Christopher Lane acusa os laboratórios de ocultarem os efeitos colaterais da maioria dos antidepressivos. Só nas versões mais recentes do Prozac foram incluídas na bula advertências sobre a possibilidade de tremores incontroláveis, diminuição da capacidade sexual, idéias de suicídio e autodestruição. Em Deixe-os Comer Prozac, David Healy, ex-secretário da Associação Britânica de Psicofarmacologia, censura as companhias farmacêuticas, por terem vendido a idéia de que a depressão seria o resultado direto de uma carência de serotonina no cérebro. Assim, muita gente que poderia estar precisando apenas de aconselhamento foi exposta a riscos desconhecidos.
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Dados da Organização Mundial de Saúde indicam que, no ano 2000, a depressão era a quinta causa de incapacitação. Em 2020, poderá ser a segunda. Porém, são dados que devem ser vistos com cautela. “Até que ponto a tristeza provocada por perdas e frustrações não está sendo confundida com depressão?”, questiona Marco Antônio Brasil. “Sofrimento faz parte da vida. Nem todas as nossas dores podem ser sanadas com remédio.”
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O psiquiatra paulista Jonas Melman, da Secretaria Municipal de Saúde, acha que, apesar dos exageros, os medicamentos são a forma mais adequada de tratar os transtornos da mente. Ele acha lamentável que uma técnica invasiva como o eletrochoque tenha voltado com força ao receituário psiquiátrico. “Como os medicamentos estão cada vez mais eficientes, a necessidade de se recorrer ao eletrochoque deveria ser cada vez menor”, ele afirma. “Em vez disso, cada vez mais pacientes são submetidos a essa terapia.”
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Para Marco Antonio Brasil, a psiquiatria tem deixado em segundo plano a origem psicossocial dos transtornos psicológicos. Muitos deles, como a bulimia, a anorexia, o estresse e a síndrome do pânico, ele diz, são provocados por pressões da vida contemporânea. O psiquiatra Renato Del Sant, do Hospital das Clínicas de São Paulo, defensor dos eletrochoques, vai na mesma linha: “Os remédios estão substituindo totalmente as conversas com os pacientes. Corremos o risco de tratar a doença mental meramente como distúrbio físico, e não como um comportamento humano.”
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Se o paciente está triste, toma Prozac; se está impotente, toma Viagra. A visão biológica é tão preponderante que as escolas de medicina, segundo ele, estão reduzindo a carga horária dos estudos de psicopatologia e aumentando a dos métodos neurocientíficos. “Dessa forma, a psiquiatria tende a desaparecer”, radicaliza Del Sant. “Nos tornaremos neurocientistas, ou neurologistas, deixando a psicopatologia para os psicanalistas.”
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Menos de um mês depois do tratamento com eletrochoque, Trancuilo Tezoto tentou se suicidar. Subiu na laje de sua casa e se jogou de uma altura de quase 5 metros. Dias antes, sua mulher insistira com os médicos da psiquiatria do Hospital das Clínicas para que o internassem. “Os médicos me disseram para tomar conta dele até que surgisse uma vaga no hospital”, ela contou. “Mas ele estava muito triste, esperou um descuido meu e se jogou. Nem os remédios, nem o eletrochoque foram capazes de pôr fim a sua angústia.”
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