Velho lítio mantém popularidade

William Faulkner: admirado, como Ernest Hemingway, pela razão equivocada de ter sido criativo à custa da coragem de enfrentar transtorno mental sem recorrer ao uso de medicação (fonte:Valor Econômico, seção: Eu& Fim de semana, 13/06/2008)
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Reza a lenda que durante o Império Romano pacientes com crises de mania e melancolia eram encaminhados para uma estação de águas rica em lítio, onde a melhora de seu quadro era visível.
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A história da utilização do elemento químico como estabilizador de humor é tão fantástica que tem direito a episódios delirantes, como o de um médico que, impressionado com os efeitos estabilizantes do lítio, resolveu adicioná-lo à água de distribuição pública, provocando casos de intoxicação na população.
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A toxidade do lítio, assim como lançamentos supostamente mais avançados da indústria farmacêutica, chegaram a inibir sua prescrição durante décadas. Seus benefícios, porém, eram tão evidentes que o tratamento acabou se impondo na psiquiatria moderna - resgatando a importância da descoberta feita exatamente 60 anos atrás pelo pesquisador australiano John Cade.
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Em 1948, Cade resolveu pesquisar a urina de pacientes com mania, depressão e esquizofrenia e constatou sua maior toxidade em relação à de outras pessoas. Imaginando que o fato estava relacionado à uréia, resolveu ministrar urato de lítio a porcos. Observou que os animais, embora se mantivessem completamente conscientes, tornavam-se letárgicos e indiferentes. No ano seguinte, o australiano testou o lítio em um paciente de 51 anos e os resultados promissores chegaram a ser publicados em uma revista médica, mas sem maior repercussão.
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A descoberta foi esquecida, até que o dinamarquês Mogens Schou publicasse, em 1954, um estudo irrefutável sobre o assunto, incluindo as dosagens seguras que deveriam ser ministradas aos pacientes e seus efeitos profiláticos. Mesmo assim, o psiquiatra não foi prontamente reconhecido, e passou a apresentar suas conclusões de forma persistente em congressos médicos, animado com o tratamento que havia beneficiado uma pessoa de sua família. Schou, na realidade, concorria em atenção com uma leva de descobertas na área de psicofármacos que ocorreu nas décadas de 1950 e 60."Até a década de 1970, o centro das atenções era o desenvolvimento de ansiolíticos e outros medicamentos, que recebiam grandes investimentos da indústria", diz o psiquiatra Valentim Gentil Filho. "O lítio nunca foi patenteado e até hoje não recebe a devida importância da mídia, apesar de ser um medicamento barato e que leva a uma remissão completa na maioria dos casos clássicos de transtorno bipolar." O médico lembra que, naquela época, os psiquiatras não tinham a competência técnica de hoje, e se intimidavam em prescrever um elemento tóxico, com o qual não eram familiarizados. "Além disso, houve uma contrapropaganda, porque os antipsicóticos e antiepiléticos estavam aparecendo com toda força nos Estados Unidos."Encontrado na natureza, o lítio é ministrado aos pacientes na forma de carbonato e precisa ser corretamente prescrito por médicos psiquiatras. No Brasil, a Eurofarma, com 95% das vendas, domina o mercado de carbonato de lítio, que nunca foi especialmente disputado pela indústria por causa de seu baixo preço. Enquanto em outros tratamentos psiquiátricos o custo para o paciente pode chegar a R$ 20 por dia, no caso do lítio, este gasto cai para cerca de R$ 0,60.
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No entanto, a Eurofarma tem visto seu produto ganhar novo status, junto com o maior conhecimento sobre a doença e o resgate do lítio como o estabilizador de humor por excelência. "O carbonato de lítio é a terapêutica básica, uma referência, por ser apropriado em todas as fases do tratamento", diz João Carlos Torrecillas, gerente de marketing da Eurofarma.
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O reconhecimento vem se refletindo nas vendas do medicamento no país. Segundo dados da auditoria Close-Up International, o número de prescrições mensais do Carbolitium - o carbonato de lítio da Eurofarma - aumentou de uma média de 40 mil, em 2005, para 53 mil, este ano.
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Por isso, e por estímulo de indicações de que haveria menor predisposição para o mal de Alzheimer em pacientes portadores de transtorno bipolar medicados com lítio, a empresa inicia este mês uma campanha junto a 7 mil psiquiatras de todo o país. "Vamos distribuir um guia prático do uso do lítio", conta Torrecillas. "Os profissionais mais antigos não encontram dificuldades na prescrição, mas os mais jovens acabam tendo menos informação, por se tratar de um medicamento mais antigo", diz.
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Embora não tenha encontrado uma droga moderna para substituir o lítio, a indústria farmacêutica vem avançando nas pesquisas de medicamentos para casos mais complexos ou mistos, que podem ser combinados com o carbonato de lítio. Na medida em que o conceito de bipolaridade se alarga, e se sobrepõe a outros quadros psiquiátricos e transtornos de personalidade, aumenta o desafio dos médicos para combinar medicamentos, controlar efeitos colaterais e monitorar seus pacientes durante as crises - nem sempre percebidas pelos próprios portadores da doença.

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